"Quanto tempo já passou desde aquela praia, aquela igreja, aquela estação? Teu tempo é diferente do meu. É marcado por conta gotas, ampulheta antiga, relógio cuco, domingo de tarde numa pracinha em alguma cidadezinha do interior. Meu tempo é líquido, corre rápido, cronômetro de corrida de curta duração, mover-se-é-estar-vivo.
Espera.
Preciso daquela música, daquele filme, pra te escrever.
Não, não te escrevo. Escrevo pra mim. Num papel de carta da minha infância. Depois guardo com as outras cartas que eu nunca te enviei.
Ops, lembrei agora, eu queimei as cartas. Será apenas esta então, a não enviada. Vai ser guardada num livro qualquer da estante. Não, não um qualquer, aquele que me destes, do personagem que não vem. Vieste, ao contrário dele. E foste, veloz - Dentro da noite veloz, mais um livro comprado pra ti e não entregue. Devia ter queimado com as cartas. E os filmes. E o vestido branco. Sim, seria uma grande fogueira.
Então te coloco no passado, meu querido Gasparzinho, fantasma maior.
Diferente das demais vezes, não sumiste silenciosamente para depois voltar com alguma desculpa surreal. Foi mordido por aranhas não catalogadas? Menino um bocadinho mais valente, foi objetivo como uma seta: vamos nos afastar. Não foi uma sugestão, foi um aviso. Devo agradecer pela delicadeza e cuidado recém adquiridos? Perdoa-me por me dispensares, meu bem. Sem lirismo, sem poesias, sem paisagem bonita de fundo. É apenas um adeus, Luísa. Guarde as páginas desta história - penosa demais, dramática demais - em alguma gaveta e vá adiante.
Meu relógio líquido registrou um bocado de tempo. O teu, quem sabe, pensa que foi ontem. Nunca entendi tua noção (canhestra) de tempo.
Rejeição brutal e profunda. As coisas seguem, que faço eu?
Penso em ti cada vez menos. Creio (agora) que sempre colori muito o que fomos. Foi mais sombrio e pesado, com mais pranto do que riso. Para mim. Mas isso é problema meu, não?
Então recebo aquele teu bilhete amassado e num suspiro dolorido penso: - Para quê?
Respondo num ímpeto, sentindo um cansaço hercúleo - e eu nem tive êxito em nenhum dos trabalhos, só sinto um gosto turvo de fracasso, por tudo o que não fomos. Não sinto mais raiva, apenas fadiga. Escreveste que continuas a me buscar. Eu não acredito, eu não vejo, eu não sinto. Isso que é amor? O que seria o contrário?
Ocorre-me agora, neste dia de sol, que te escrevo esta carta-pra-mim pois em breve vou conhecer a tua Praga. Teu espelho de mundo. Sentirei carinho ao lembrar-me de ti, quando estiver lá? A doçura secou, acho. O anel que tu mes destes era de vidro. Quebrou.
Enfim (eu falo de fim o tempo todo, não?)...
Luísa
Esta estação."
(http://vemcaluisa.blogspot.com/
2011/07/carta-nao-enviada-cadernos-de-luisa.html)